sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Cabeças

O sujeito com cabeça de papagaio entrou no bar, pediu uma cerveja gelada e acendeu um cigarro. Quase meia-noite e ele não queria saber de ninguém. Nenhuma mulher enchendo o saco, nenhum hipócrita se dizendo amigo; apenas um funcionário do bar servindo cerveja gelada, e uma musiquinha baixa nos alto-falantes baratos perdidos em algum canto estratégico do lugar. Era semana de apagão, mas o pé-sujo tinha gerador próprio, adquirido sei-lá-porquê.
Olhando para a fumaça que se chocava contra o copo embaçado, o sujeito com cabeça de papagaio apoiou seus braços no balcão de modo a esticar a coluna. Ele sentiu sono, como se estivesse derrotado após mais uma longa batalha no asfalto da grande e quente metrópole. As penas de sua cabeça, pequenas e multicoloridas, começaram a cair sobre o balcão e em torno da cadeira alta, no chão. Ninguém se incomodou, e o sujeito com cabeça de papagaio sequer ligou para isso. Continuou tomando a cerveja, fumando um cigarro atrás do outro, e olhando o pouco movimento do bar.
Houve um tempo em que o sujeito com cabeça de papagaio convivia com outros sujeitos com cabeças diferentes. Um tempo em que homens com cabeça de tamanduá conversavam com mulheres-lacraias, e mulheres com cabeça de tubarão-martelo davam em cima de homens com cabeça de aranha. A garçonete do melhor bar do Centro tinha cabeça de gata; o dono do mesmo bar, cabeça de buldogue. O cafetão boa gente tinha cabeça de bugio, e namorava, aos trancos e barrancos, uma velha prostituta com cabeça de naja. As crianças que mendigavam nos sinais tinham cabeça de urubu, cabeça de formiga ou cabeça de pica-pau. Eram tempos melhores, mais justos.
O sujeito com cabeça de papagaio matou o resto da cerveja e apagou o cigarro jogando o mesmo na espuma no fundo do copo. Sem asas que pudessem levá-lo a um lugar melhor, ele apenas se levantou, tirou um lenço do bolso, limpou o suor da fronte e saiu.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Reflexo Covarde

Dois maços de Tiparillos, alguns doces e a revista de mulher pelada. Total de 65 mangos.
“Mais alguma coisa, chefe Marcuse?”
Martin “Touro” Callaham era um daqueles donos de banca de jornais que nunca sorriam. Passava o dia recebendo produtos, arrumando o mostruário, tratando com clientes e dando trocos em moedinhas ou balas. Nunca sorria, mesmo se o cliente lhe desejava um bom dia. Nunca sorria, mesmo se uma bela morena tascava um daqueles sorrisos fatais de agradecimento e algo mais.
Callaham não tinha aquele apelido por acaso: fora campeão amador dos pesos-médios. Derrotara o famoso Dragão Sagitariano em uma luta de oito rounds lendários. Mandara o Martelo Irlandês pra lona em menos de cinco segundos. Callaham era rápido, não era chegado em espetáculos: apenas subia no ringue e fazia o que sabia fazer melhor. Depois recolhia sua parte, e ia pra casa, sozinho, pensar na vida e nas lutas do dia seguinte. Um solitário que não caía.
Eu só vi o carro quando o som de seus flutuadores termodinâmicos mudou para um aguda característico na curva. Meus reflexos ainda funcionavam. O mesmo não pude dizer dos reflexos de Callaham. Acho que ele estava prestando mais atenção no número de jornais recebidos. Eu me abaixei ao mesmo tempo em que saquei o trabuco. Callaham apenas olhou para baixo. Uma única rajada de Thompson-X4 com silenciador. Eu ainda disparei cinco tiros. Foi então que Callaham tombou, com os olhos esbugalhados. Incrédulo, como se aquele não fosse um fim digno de um ex-campeão.
Sim. Eu era o alvo. Não Callaham. Não o Touro.
Sequer teve tempo de dizer algo. Os covardes. Na certa era a gangue espanhola que visitei horas antes.
Liguei para a delegacia e pedi uma viatura.
“E mande logo o rabecão. Temos uma vítima fatal...”
Peguei a carteira. Tirei uma nota de 100. Em seguida, rasguei o lacre do Tiparillo e acendi o bicho.
“Fique com o troco, Touro...”

Últimas Frases ao Celular (Parte04)

“...Esquece. O sujeito é marciano. Na certa já sabe dos teus planos...”

segunda-feira, 6 de abril de 2009

O Ombro Tatuado

“Tubarão!”, gritei. Um dos novatos levou um susto e chegou a derramar um pouco do café do copo plástico. O presunto era um estivador do Zona BC-15. Cargueiros interplanetários. Tinha várias tatuagens pelo corpo. Os desenhos eram bonitos, e a coisa toda apenas realçava o fato de um de seus braços ter sido violentamente arrancado em algum espetáculo de sangue, dor e desesperança.
“Vai ver foi comido por algum tubarão de dieta...”, continuei.
“Pensamos nisso, senhor. Mas o legista disse que o braço foi arrancado antes de o corpo ser jogado no mar”, respondeu o novato à medida que tentava se limpar.
“Alguém não se importou em fazer uma bela lambança, hein?”, notei.
“Não, senhor. Baixamos a ficha da vítima. Timothy Galadred. Sem família. Pequenos furtos e confusões por bebedeira, nada de muito grave. O último contratante foi um tal de Xiao Ming...”
O Tiparillo ficou imóvel entre meus lábios assim que o nome cortou o ar da noite tal qual faca kukuri.
“Xiao Ming? Dos Mings da Zona Vermelha?”
“Acho que sim, senhor. Ainda estamos sem dados suficientes sobre esse Ming. O computador central não acusa nenhuma irregularidade muito grave.”
Nem acusaria, pensei. Ming era como uma sombra em tempo nublado. Um ponto de interrogação entre as estrelas deste quadrante. Um mosquito transmissor de malária em algum saguão de um aeroporto dos Trópicos. Era o chefão mas nunca fazia o trabalho sujo. Era o imperador, e nunca se metia com a gentalha.
“Alguma sugestão, senhor?”
“Apenas uma. Me traga outro café. Vai ser uma noite daquelas...”

Últimas Frases ao Celular (parte 03)

“...Vou tentar detonar daqui mesmo. O número de vítimas será maior...”

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Relatório de Kordini-6

Fui acordado pela aeromoça por volta das sete da manhã. Tomei café e comi croissants com manteiga e ovos mexidos. Não tive problemas na alfândega de Kordini-6. Os dois pesados baús passaram pelo raio-X sob o olhar despreocupado e monótono da policial de olhos verdes e pele bronzeada. Suei frio, mas não dei mole. Peguei um daqueles táxis de bagageiro gigante e mandei tocar pra Avenida Hümensrad, número 42. Lá chegando, descarreguei os baús com a ajuda do motorista obeso, paguei os 2000 Krods da corrida e toquei a campainha do portão principal. Ainda suava, mas não tanto quanto na alfândega. O mordomo de ar oriental atendeu a porta e me pediu para esperar no escritório. Era um lugar cheio de livros bem organizados e obras de arte bem conservadas. Coisa de gente bacana. Não demorou muito para que a misteriosa receptadora aparecesse. Usava um vestido longo, esverdeado e com um quê de transparente. Não disse seu nome, mas sorriu educadamente, sem exageros. Seus longos e perfumados cabelos ruivos não condiziam com o ar misterioso com o qual havia se revestido havia duas semanas, quando, por meio de mensagens eletrônicas, encomendara os dois exóticos itens. Nada fáceis de achar, estes itens. A última equipe que tentou teve sete de seus homens dilacerados. Nossa equipe, contudo, utilizou um método diferente, que não fazia uso de processadores de plasma radioativo ou aqueles ultrapassados intensificadores de moléculas Hopkins. Não que as condições de trabalho fossem melhores: cinco dias nas selvas de Kiedis-Falom são suficientes para deixar qualquer caçador experiente com algum princípio de loucura. A garantia de uma boa recompensa, entretanto, afastava – por algum tempo – os fantasmas da solidão, do medo e de uma morte violenta. A receptadora pediu sigilo absoluto. Eu disse que, pela grana que recebi, levaria aquela conversa para o túmulo. Ela sorriu novamente. O montante da recompensa fora devidamente transferido para a minha conta. Eu agradeci e lhe desejei boa sorte. Quem diabos sabia o que ela faria com aquelas criaturas? Não era mais problema meu. Eu já tinha lugar marcado na Primeira Classe do vôo noturno para o balneário de Ibiscus Zät. Kordini-6 que fosse para o Inferno.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Melhor Morrer por Ela

Mesmo sangrando feito um porco degolado, o sujeito demonstrava alguma força de espírito, e insistia em permanecer com o olhar fixo no meu rosto. Eu continuava socando o miserável. Não tinha o menor respeito por quem abusava de crianças, e fazia questão de deixar isso bem claro, fosse aos olhos da justiça, fosse de modo mais privado. Tanto fazia se era um filho-da-mãe de quase dois metros como aquele. Tanto fazia se era no saguão da delegacia ou num fétido beco como aquele. Peguei o cara de surpresa, quando ele saía pelos fundos do restaurante chinês da rua Tavernier, no Nível R. Acertei a nuca do imbecil com uma das latas de lixo que esvaziara para melhor manuseá-la. O cara tombou feito um daqueles personagens de desenho animado. De cara no chão. Um belo estouro. Nem parecia o mesmo valentão que freqüentava o Bar Borghese e contava, já embriagado, as vantagens de seus “feitos” a quem quisesse escutar. Um valentão vencido por uma lata de lixo. Definitivamente, não tinha lógica alguma mandá-lo para uma cadeia. Foi quando ele abriu a boca e despejou, além de baba ensangüentada, suas últimas palavras:
“Ei, cara, por que tá fazendo isso? Não me conhece, não?”
“Dolores manda lembranças...”, respondi.
Me livrei da lata de lixo e saquei a Webley. Mais um tiro entre tantos outros barulhos na noite do Nível R. O resto era com os novatos da delegacia.

sábado, 31 de janeiro de 2009

Tímida Versão de um Esgoto a Céu Aberto

O sujeito fora cravado de azeitonas 9mm sem dó. Entre as boates Kuniling e Blue Haddock. Manfred Losson era seu nome. Um calhorda contrabandista de heroína. Briga de gangue asiática, como sempre. Eu não dava a mínima. Apenas acendia meus Tiparillos e perambulava pela cena do crime, até achar algo que valesse dar uma olhada. Mas aquilo era uma quebra-cabeça dos diabos. Um mato sem cachorro. Fiz os questionários de praxe, enchi os sacos dos mesmos policiais novatos, sempre cuspindo fumaça nos seus olhos para ver se conseguia alguma reação mais visceral. Nada. Parecia um caso perdido, o tipo de coisa que antecede uma recusa de pagamento. E sem pagamento, adeus comida mais decente. Adeus Tiparillos diários. Adeus mulheres de finais-de-semana. Foi então que percebi que até os mortos podiam acabar com o teu dia. Malditos sejam!