quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Sonhos Pornográficos de um Cão sem Dono (Parte Primeira)

Com focinho de poucos amigos, o cão sem dono adentrou o moquifo, que já exalava o típico cheiro de álcool e fritura às 8 da manhã.

Não disse bom dia, e logo pediu um rabo-de-galo.

Nunca fez cara de tadinho ou gemeu para conseguir restos de refeição ou manás de caçambas de lixo. Era tudo na marra, exibindo dentes aos rosnados.

Agora, engolia a marvada sem dó, fazendo com que a mesma rasgasse sua garganta tal qual Hefaistos cruzando o Santa Bárbara de madrugada.

Também não agradeceu. Cão sem dono tinha dessas...

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A Morte bate à porta...

Ainda que desprovido de sua calota craniana, Rabbit Kenzo, assassino profissional e filatelista nas horas vagas, tomou o elevador até o 33o andar do edifício Yorubba e se arrastou pelo corredor de carpete esverdeado até chegar ao quarto de número 3366.

Bateu à porta. Toc, toc.

"Quem é?", indagou uma voz deveras fina.

Rabbit respondeu descarregando metade de sua Glock última geração. A porta se abriu. No chão, sangrando e atônito, jazia o moribundo e magro corpo de Nordi Loo, assassino menos profissional e galanteador nas horas vagas.

Para Rabbit, vingança era vingança. E ponto final.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

O Último Carioca

O “Preto que Satisfaz” das Frenéticas ainda ressoava na cabeça de Damião quando este despertou de um sono de parcas duas horas. Ao abrir os olhos, com um misto de surpresa e ansiedade, ele percebeu que continuava no mesmo maldito lugar: o bairro da Lapa no devastado e fétido Rio de Janeiro de 2008. A mesma cidade que, meses antes, fôra reduzida a cidade-fantasma por algum tipo de pneumonia pouco conhecida que dizimava as populações à proporção de centenas ao dia e que dera à luz uma legião de mortos-vivos brutais e antropófagos que vagavam pelos bairros infectados.

Damião sobrevivera à praga e aos zumbis, mas nem por isso se adaptara à nova realidade. Para onde quer que olhasse, a paisagem era de pura destruição, com escombros mal-cheirosos, veículos queimados e barricadas de entulho. Alguns prédios em ruínas ainda ardiam em chamas e exalavam um nauseabundo odor de carne humana carbonizada. Fosse na Vieira Souto, fosse na Mem de Sá, o lixo acumulado se misturava às carcaças de animais e transformava o esgoto a céu aberto em um líquido escuro e viscoso, que escorria ladeando lentamente as calçadas e que desaparecia nos bueiros. Aqueles que ainda permaneciam humanos, e amontoavam-se silenciosamente em cortiços, se degladiavam por restos de comida no Centro e nas raras “zonas de distribuição”, porcamente abastecidas por despejos aéreos mensais.

Do passado alegre, sobravam apenas as lembranças. As noitadas, regadas a cerveja e batidas, em botecos da Lapa e de Santa Teresa; os bailes freqüentados por jovens e idosos; as festas nas quais Damião “botava o som” e que sempre terminavam com o sol nascente na cama de alguma jovem quente; as vantagens contadas à exaustão por velhos malandros e jovens surfistas; a sensação do primeiro chope gelado refrescando goela abaixo; as gírias empregadas de maneira sincera nas rodas de chorinho e samba de partido alto. No cérebro de Damião desfilavam as mais queridas cenas de um Rio há muito perdido. Clientes pediam os sempre generosos sanduíches de salaminho no Paladino; vendedores anunciavam mate gelado enquanto crianças observavam um opulento senhor uruguaio fatiar um pedaço de picanha sob uma barraca de uma praia de Ipanema abarrotada. O Rio, apesar de seus problemas e crises de cidade grande, ainda continuava sendo a eterna Cidade Maravilhosa, cheia de encantos mil. E foi exatamente a partir do Coração do Brasil que a nova peste começou a se alastrar.

Agora Damião precisava se preocupar com assuntos mais sérios. Assuntos que pouco se movimentavam à luz do dia, que enxergavam e farejavam melhor sob o luar mais brilhante, e que se alimentavam de carne humana, ora putrefata, ora fresca. Esses mesmos assuntos não deixavam o ex-DJ ter uma hora de sono decente sequer e faziam com que ele não raramente perdesse as esperanças em um futuro melhor. Os mortos-vivos do Rio de Janeiro constituíam uma segunda praga, que emergia dos buracos mais sórdidos e se infiltrava por todos os pontos da extinta metrópole, infectando sobreviventes, caçando os fracos e se proliferando tal qual camundongos no celeiro.

“Saco! Outra vez, não!”, esbravejou, esfregando o suor do rosto.

Ele empunhou a metralhadora Ingram, munida de silenciador, que achara, meses antes, em um barraco no Morro da Providência. Toda vez que o pino de segurança emperrava, Damião lembrava do tempo em que as coisas, por mais difíceis que fossem, acabavam dando certo. Naquele tempo, a presença de amigos e familiares e a paixão pela cidade que o vira nascer, crescer e conquistar seu espaço era o combustível que mantinha a chama da perseverança e do otimismo acesa. E agora, relegadas ao título de imagens que iam e vinham, tais lembranças somente faziam com que o ódio de Damião – ódio do simples fato de ele “existir” naquele lugar irreconhecível – o alimentasse e o mantivesse vivo e em alerta. Finalmente, a trava de segurança alcançou a posição “FOGO”.

Os primeiros grunhidos se fizeram ouvir ao longe. Damião estava a uma centena de metros dos Arcos, escondido e protegido atrás de uma barricada formada por tábuas de madeira, paralelepípedos e blocos de cimento que se erguia entre a Teotônio Regadas e o largo da Lapa. Ele sabia que os malditos vinham pela Mem de Sá, mas não descartava a probabilidade de um ataque pela Riachuelo e adjacências. Também sabia que até que chegassem a um ponto onde ele pudesse vê-los, meia hora se passaria, durante a qual ele teria que agüentar aqueles horríveis sons guturais ecoando pelo entardecer na Lapa. Tudo que desejava escutar naquele pedaço de inferno era alguma música que costumava colocar nas festas. Um Paulinho da Viola, um Tim Maia ou simplesmente algum hip-hop bem bolado da Zona Norte. Perfeito mesmo seria voltar a ouvir o burburinho humano do Rio; seus gritos, risos e onomatopéias pairando sobre a cidade tal qual um concurso de pipas coloridas e cintilantes. Nem que isso funcionasse como alentadora e contraditória trilha sonora para o que estava por vir quando os zumbis cruzassem os Arcos.

A situação carioca não era das melhores antes mesmo do advento da praga. Era simplesmente insustentável, marcada por uma violência e um descaso que, cedo ou tarde, ceifariam o dia-a-dia de milhares de cidadãos. Damião conhecia aquela realidade desde sua infância na Tijuca, mas chegava a ficar assustado quando os noticiários davam conta de uma violência que se alastrava por toda a cidade, vitimando até aqueles que considerava intocáveis. Era como se a violência, antes ligada a um certo número de comunidades, tivesse se descontrolado e invadido, sem aviso prévio, o resto da cidade, democratizando os alvos a serem conquistados ou aniquilados por seus letais tentáculos.

As roupas de grifes em frangalhos e a maquiagem borrada não deixavam dúvidas: os zumbis eram mesmo antigos emergentes oriundos da Zona Sul e da Barra – um morto-vivo comum era algo assustador; um morto-vivo emergente algo duplamente assustador. Era como se o destino zombasse de Damião nos momentos mais inoportunos. Lá estava ele, um ex-DJ tentando sobreviver a uma peste, tendo que se proteger de uma horda de ex-colunistas sociais, ex-donos de redes de motéis, ex-assessores de imprensa caindo aos pedaços, com feridas por todo o corpo, com seus olhos brancos de boneca e seus cabelos ensebados. Vagavam por todo o Rio, brandindo saltos-agulha e peneiras de piscina, atiçadores de lareira e coleiras de yorkshires; atacavam qualquer um que avistassem para transformá-lo em morto-vivo ou simplesmente para devorá-lo. Haviam sido – e, de certa forma menos gloriosa, ainda eram – as verdadeiras “criaturas da noite”. A horda de zumbis se aproximava da barricada de entulhos, tropeçando e urrando à medida que a fome aumentava.

Damião apertou a Ingram com toda a força. Ele sabia que aquele confronto seria diferente dos demais. Também sabia que aquela seria sua última batalha contra os zumbis e que acabaria sendo devorado ou mutado em um. Não havia meio-termo para o seu destino. Ainda assim, Damião tinha certeza de que era humano e dono de suas emoções, e que toda sua vivência no Rio de Janeiro não havia sido em vão. Todas aquelas memórias não podiam ser apenas uma cortesia da casa ou um prêmio de consolação inútil e assaz macabro entregue pela mão do Destino. Cada imagem que se agarrava à sua mente nunca poderia ser apagada por zumbis ou pragas. Vivo, morto ou morto-vivo, Damião ainda as teria consigo.

Pouco mais de vinte metros separavam o homem das bestas. Damião olhou para os dois pentes vazios aos seus pés.

“É isso. Acabou a festa”, murmurou antes de soltar um forte suspiro. “Saco.”

Um dos zumbis emergentes, brandindo uma faca Ginsu para sushis e sashimis, se ergueu e urrou, conclamando seus decrépitos pares para um contra-ataque final. Seu momento de glória terminou assim que seis silenciosas balas atingiram seu torso, rasgando-o ao meio numa explosão de tripas e sangue escurecido. Houve uma curta convulsão entre os zumbis restantes, mas nenhum deles parecia se importar com a “morte” do companheiro. Todos estavam à espreita, observando cada passo do adversário humano. Golfadas de saliva já saíam de suas bocarras e escorriam por seus pescoços adornados com colares da Tiffany’s.

Os zumbis emergentes estavam a poucos passos de uma vitória e de uma possível refeição. O ex-DJ estava a onze balas de ser o prato principal. Onze projéteis não seriam suficientes para liquidar toda aquela corja de emergentes caindo aos pedaços, mas Damião não estava disposto a facilitar. Ele devia isso a si próprio, e devia isso à cidade que tanto amava. Afinal, ele estava prestes a reencontrar um lugar melhor.

Tal qual gato negro surgindo no meio de um beco mal iluminado, Damião pulou de trás da barricada e fez com que a escória encarasse o cano da Ingram. Gritos e palavrões se intercalavam. A Lapa transformara-se novamente no ponto quente, na “boa” de mais um entardecer desalmado.

Antes de receber o golpe fatal, Damião sorriu timidamente. Estava com medo, mas com a certeza de que dali a alguns segundos estaria sentado na cidade de seus sonhos, acompanhado de seus ídolos, embalado pela melhor música do planeta, degustando uma lingüiça calabresa fatiada e trocando beijinhos com a mulata mais gostosa do pedaço. A vida que pedira a Deus.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Musik

Sinfonia em Ré Maior para escarros e limpezas de gargantas sexagenárias, Ópus 666, com a Filarmônica do Apartamento 101 de Pitboyland, sob a regência do excelentíssimo morador chato sem pudor.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Últimas Palavras ao Celular (parte 06)

“...É isso aí, cara. Foi bom te conhecer...”

terça-feira, 22 de junho de 2010

Apostas Quentes

O nível "M" de Beta-Siridó nunca esteve tão abafado em um verão intergalático. Mesmo com dois ventiladores ligados, o escritório parecia uma sauna. Eu só tinha mais duas cervejas geladas no frigobar, depois disso abriria uma filial do Inferno ou tostaria até a morte. Foi quando o telefone tocou na noite. Do outro lado, mais uma voz feminina.
"Senhor Padawan Marcuse?"
"Ele mesmo...", respondi.
"Padawan Marcuse, detetive particular?"
"É o que está escrito na porta, meu bem..."
Ao mesmo tempo em que a misteriosa jararaca cuspia suas lamúrias, eu tentava inutilmente enxugar o suor da fronte com um lenço assaz cansado. Segundo o oculto jaburú, seu irmão estava metido com uma máfia oriental qualquer. Havia uma mistura satânica na trama: seqüestro de garotas virgens no nível "B", corrupção do chefe de polícia do 16º Distrito, festas de famosos regadas a champanhe e drogas pesadas, além do feijão-e-arroz de toda e qualquer investigação (mortes misteriosas, perseguições no meio da noite, recados macabros passados por debaixo da porta, etc.).
A desesperada mulherzinha estava disposta a pagar um bom preço pelos meus serviços, e queria marcar um encontro no famoso café Debbie Stooge, no nível "K" de Beta-Siridó. Depois, quem sabe?...O fato é que o calor continuava a roer meus já amolecidos neurônios, e a única coisa que eu desejava era ser trancado em alguma câmara frigorífica ligada na temperatura mínima. Nada de casos, nada de crimes, nada de lidar com policias imbecis ou com imperadores do submundo. Apenas o frio por companhia e a hibernação por garantia.
Aos soluços, a fêmea jurou que eu era sua última esperança. E disso, eu gostei. O calor podia estar insuportável, a ponto de eu esquecer temporariamente meu status de detetive particular. Mas outros tipos de calor tinham o mesmo efeito de uma suave brisa em uma praia deserta de Nova-Acapulco.
"Ok. Tô indo pro Debbie Stooge. Traga um adiantamento…"
Com um pouco de sorte – coisa rara em Beta-Siridó –, a cliente podia ser jeitosinha. E ter uma banheira grande o bastante para duas pessoas ardendo.