quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Mortos não sabem dirigir

Meu relógio falsificado marcava 11 horas e 32 minutos de uma noite fedorenta e pegajosa de abril. Beta-Siridó tentava manter a classe a duras penas, e isso significava vomitar o maior número de escórias ambulantes para os demais níveis de seu território. Após receber o telefonema do inspetor da Narcóticos Simon Corefield, peguei um táxi até o Nível L. Acendi um Tiparillo de aroma achocolatado e mandei seguir em frente. O motorista era um sujeito magro, calvo, ranzinza, que não parava de contar anedotas sobre o tempo em que Beta-Siridó era considerada uma “jóia rara”, segundo ele.
“Pois é, chefe, isto aqui era uma maravilha. Nada de crimes, chefe. Nada de baixaria”
“Difícil de acreditar”, respondi.
“Pois é, chefe. Nenhum habitante dos Níveis se metia a esperto com a Lei. Simplesmente não podiam, chefe.”
“Ainda bem que isso mudou. Caso contrário, eu estaria desempregado.”
“Isso, chefe, isso. O senhor tem razão, chefe.”
O rosto do motorista, pelo menos a parte dos olhos refletida no espelho retrovisor, não me era estranho. Mesmo dirigindo pela aerovia abarrotada de carros e motos, ele ainda arranjava habilidade para se mexer, como se estivesse coçando a perna ou algo assim. Isso sem falar na habilidade para tagarelar.
“É, chefe. As coisas mudaram. A gente nunca sabe o dia de amanhã, chefe. Nunca.”
“É...nunca.”
Seus olhos se paralisaram no espelho. Eu entendi o lance todo. Mas fui mais rápido. Saquei minha Webley modelo 43-C e disparei contra o assento do motorista. Três azeitonas ferventes atingiram o falastrão. Os freios funcionaram por instinto, e o táxi parou em um dos acostamentos. Parecia tudo planejado. Desci do veículo e verifiquei o alvo. Com o assento ainda soltando fumaça, olhei melhor para o rosto atônito e boquiaberto do motorista. Não havia dúvidas: era mesmo Barney “Linguarudo” Dammis, um ladrão de bancos que eu ajudara a colocar atrás das grades. No tempo em que Beta-Siridó já deixara de ser a tal “jóia rara”.
Liguei para o Distrito mais próximo e pedi o rabecão. Depois comecei a andar em direção a um dos elevadores comunitários que me levariam até o Nível L. Nada de táxis até o final do dia.

Rua Bourdain, número 8

Com movimentos certeiros, Padawan Marcuse levou o sanduba de salaminho italiano à boca. A hora da refeição era sagrada, e Marcuse deixou o telefone tocar sem atendê-lo. Pouco fazia diferença se alguém levava um tiro na rua, ou se alguma donzela tentava extorquir o sujeito apaixonado. O sanduíche de salaminho italiano importava mais.
Quando terminou o sanduba, Marcuse acendeu um Tiparillo e ficou uma boa meia-hora contemplando a vista poluída de Beta-Siridó. O Nível M não era lá grandes coisas, mas era melhor que um daqueles pardieiros do Nível R. Tinha sua cota de diversão, de horrores e aberrações. As mulheres davam para o gasto, e um sujeito decente como Padawan Marcuse podia arranjar uma bebida de graça. O telefone tocou novamente. Marcuse atendeu. Do outro lado da linha, uma voz feminina trêmula.
“Senhor Padawan Marcuse?...”
“Ele mesmo, madame. Posso ajudá-la? A senhora não me parece bem...”
“Eu acho que...estou sendo seguida. Meu ex-marido. E seus amigos. Eles roubaram um grã-fino. Eu...”
“Calma. A senhora está por perto?”
“Sim...duas quadras. Esquina da Bourdain com a Maderatti. Uma cabine telefônica amarela. Estou com muito medo, senhor Marcuse.”
“Estou a caminho. Se alguém tentar entrar na cabine, use a lista telefônica...”
Mal desligou o telefone, Padawan Marcuse nem se incomodou em descer as escadas do prédio sem o paletó e o sobretudo. Muito menos sem um Tiparillo aceso entre os dentes. Ele correu em meio à multidão, derrubou alguns pedestres, atravessou a faixa, quase foi atropelado por um caminhão de mudanças, e seguiu até a interseção mencionada ao telefone. Lá estava ela: a cabine amarela. E dentro desta, um piteuzinho que brilhava à distância. Corpo esguio, longos cabelos negros anelados, rostinho do tipo mignon, o todo embalado em um daqueles vestidos de algodão baratos que apenas o excitavam mais ainda. Padawan Marcuse também vislumbrou o lado negro da pintura: quatro gorilas com cara de poucos amigos, indo na direção da cabine. Pouco importava, pensou. Seria uma boa briga. E o prêmio não era de se jogar fora.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O Capitão Ahab e os Gatos da Baleia Elétrica


Pobre homem era o Capitão Ahab. Triste, desconfiado e eternamente ranzinza. Singrando um mar de raiva à procura da besta-fera que devorara sua família e em seguida cometera a pachorra de palitar os gigantes dentes com uma de suas pernas. Com o rosto a expressar a ira de mil loucos demônios e os olhos esbugalhados de um fantasma sedento de vingança, Ahab permanecia no timão do Pequod, atento a qualquer movimento suspeito nas escuras águas do Pacífico. Um dia, uma semana, um ano. Quanto tempo até o encontro?
E eis que o bondoso Destino lhe presenteia. Um mamute dos oceanos infernais. Um Leviatã fosforescente e cravado de antenas. Um naco de carne dos deuses mais hediondos. A baleia elétrica.
“Desnaturada dos infernos. Ainda hoje hei de ter minha tão aguardada vingança”, bradou o lobo do mar. Entrou em um dos botes do Pequod, armado de três arpões fabricados por um armeiro chinês caolho, e remou sozinho na direção da bruta espécie. Ainda longe, já conseguia vislumbrar outros inúmeros arpões cravados no couro cetáceo, frutos de tentativas que invariavelmente acabavam em morte e lamuria. Tal qual marcos para cada homem morto. Então, encostou no gigante e alvo algoz, pulou em sua corcunda e cravou um dos arpões no grosso tecido. Não havia mais jeito de retornar ao bote. Agora era encarar o destino e partir daquela para melhor. Cravou o segundo arpão, depois o terceiro. Nada de o bicho reclamar. Apenas jorros de sangue e espuma em meio ao turbulento oceano. Ahab e seu inimigo eram um só. Para onde um fosse, o outro iria junto. Inferno? Céu? Limbo? Pouco importava.
Ahab e a baleia elétrica agora faziam parte do mar.

Apenas um diálogo

Ela olhou pra mim e disse: “você só vai conseguir queimar o teu filme, cara.”
Eu respondi: “em uma cidade onde quase todos me mandam para o inferno, qual o problema em ir se preparando?”
Ela tomou o resto da cerveja, e pediu mais uma garrafa ao garçom.
“Você é quem sabe. É tua vida”, ela disse.
“É o que dizem”, eu disse.
Sorvi o meu resto de cerveja, paguei minha parte e desapareci na noite fria.

Parindo Aranhas

No começo, achei tratar-se de uma simples obstrução do folículo pilossebáceo devida à deposição de resíduos epiteliais e de poeira, e que aparecia à vista como um ponto negro na pele. Um comedão, por assim dizer. Mas aí uma amiga minha me falou sobre a tal colônia de propionibacterium acnes. Então meu sangue gelou. Literalmente, aranhas nasciam na ponta do meu próprio nariz. Minúsculos aracnídeos, despejados de seus minúsculos ovos.
Pensei em mudar meu nome. Algo com “Aracno” no meio. Parecia imbecil.
Eu estava mesmo em maus lençóis.